quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

África e brasilidades em arte


A África, com uma superfície de cerca de 30 milhões de km², corresponde a quase ¼ do total das terras emersas do globo terrestre. Dividida ao meio pela linha equatorial, é também atravessada pelos trópicos de Câncer e de Capricórnio. Junto com a Europa e a Ásia, forma o Antigo Continente, expressão de caráter tipicamente histórico.

Ao norte, a África está separada da Europa pelo Mar Mediterrâneo. A nordeste, o Mar Vermelho isola-a da Península Árabe, pertencente geograficamente à Ásia. Porém, há um pequeno ponto de ligação entre esses dois continentes, através do istmo de Suez. A ocidente, a África é banhada pelo Atlântico; a oriente, pelo Índico. Um grande continente, mas praticamente a terça parte dele é formada por desertos. O litoral pouco recortado, no seu conjunto, e os poucos rios navegáveis oferecem dificuldade tanto para o comércio externo como para a penetração territorial.

Apesar da brilhante civilização egípcia, dos contatos coma cultura greco-macedônica, da posterior presença romana, bizantina e especialmente árabe-islamita na África Mediterrânea, as relações entre esse continente e a Europa, até o século XV, eram pouco importantes. Foi então que se intensificou o comércio, baseado principalmente na exportação de pessoas escravizadas para o trabalho em outros continentes.

Em 1441, os primeiros negros foram apresados pelos portugueses. Nos cinco anos seguintes, cerca de 500 escravos chegavam anualmente a Portugal. No fim desse século, o tráfico era bastante significativo, aumentando ainda mais com a descoberta e a colonização européia do continente americano.

O tráfico negreiro foi uma das principais atividades comerciais entre os europeus e a África. Por três séculos e meio, chegaram à América cerca de 10 milhões de cativos, não se considerando os que morreram na luta contra “os caçadores de gente” e nos navios negreiros. No Brasil, estima-se o desembarque de cerca de 4 milhões de escravos, enquanto durou o tráfico (até 1850). Historiadores qualificam essa tragédia como um “verdadeiro genocídio”.


Porém, a partir do século XIX, os europeus ampliaram seu interesse em relação ao continente africano, para atender as suas novas necessidades colonialistas.

Propor uma definição geral na arte na qual se incluiria a afro-brasileira colocar-nos-ia diante de uma velha discussão, inesgotável, que já foi explorada pelos filósofos, historiadores, críticos de arte, sociólogos e antropólogos. Nos tempos atuais, o termo “arte” mudou de sentido e evoca preferencialmente tudo aquilo que concerne o domínio da estética da criatividade livre e desinteressada. Trata-se de uma atividade tipicamente cultural. A arte é múltipla em suas formas: arquitetura, pintura, escultura, poesia, música, dança, cinema, fotografia, etc., todas consideradas como produtoras de profundas emoções e de beleza. Descobrir a africanidade presente ou escondida nessa arte constitui uma das condições primordiais de sua definição.


Mas que africanidade é essa, quando sabemos que os criadores dessa arte são descendentes de africanos escravizados que foram transplantados no Novo Mundo? Transplantação essa que operou um corte e, consequentemente, uma ruptura com a estrutura social original. A partir dessa ruptura, que, hipoteticamente, teria provocado uma despersonalização, ou seja, uma perda de identidade, ficam colocados o problema e as condições de continuidade dos elementos de africanidade nessa arte, por um lado, e a questão das novas formas recriadas no Novo Mundo e de como essas novas formas poderiam ainda ser impregnadas de africanidade, por outro.

Como escreveu Roger Bastide, o problema que se coloca em primeiro lugar é o de compreender como tantos elementos culturais africanos puderam resistir ao rolo compressor do regime servil. Para que os elementos culturais africanos pudessem sobreviver à condição de despersonalização de seus portadores pela escravidão, eles deveriam ter, a priori, valores mais profundos.

Sabe-se, por exemplo, que durante a escravidão foram toleradas e até institucionalizadas as cerimônias de coroação dos reis do Congo. Mas essa singularidade concedida aos cativos e libertos bantos do Congo só era possível dentro do espaço das confrarias religiosas às quais pertenciam, tais como a Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora das Portas do Carmo, São Benedito etc. No entanto, não puderam, dentro do contexto colonial e escravocrata vigente, reinventar objetos referidos, tradicionalmente utilizados nas instituições políticas africanas da época.

Todavia houve um campo cultural muito resistente, no qual se pôde nitidamente observar o fenômeno de continuidade dos elementos culturais africanos no Brasil. Este campo, muito estudado pelos especialistas sociais de várias disciplinas, é o da religiosidade.


Trazidos pela força ao Brasil, nas condições conhecidas, esses africanos escravizados não podiam carregar em suas bagagens (o que certamente não fizeram) todos os objetos necessários às atividades culturais, e símbolos dos deuses e espíritos ancestrais. Alguns teriam trazido escondidos (supõe-se) pequenos objetos de culto, amuletos protetores e pequenos utensílios. No entanto, encontraram no Brasil condições ecológicas semelhantes às do ecossistema de suas origens, que ofereciam, entre outras coisas, as mesmas essências vegetais, o que teria facilitado a continuidade de uma religião cuja relação entre o homem, a sociedade e a natureza é primordial. Visto por esse prisma, conclui-se que uma parte de sua medicina e da produção dos objetos simbólicos ligados às suas práticas e aos seus cultos religiosos teria encontrado um terreno fecundo e mínimas condições de resistência, continuidade e até inovações, apesar da adversidade explícita no sistema colonial e escravista. É assim que nasce a primeira manifestação das artes plásticas afro-brasileiras. Uma arte, sem dúvida, religiosa, funcional e utilitária.


Insistimos em dizer que a primeira forma de arte plástica afro-brasileira propriamente dita é uma arte ritual, religiosa. Seu nascimento seria difícil de datar por causa da clandestinidade na qual se desenvolveu, uma vez que a religião oficial era o catolicismo. Essa clandestinidade, acrescentada ao caráter coletivo dessa arte, deixou no anonimato os artistas e artesãos que a produziram. Durante quase três séculos, essa arte, seguindo o passo da sua matriz africana, ficou totalmente ignorada, não apenas do grande público, mas também do mundo erudito historiador, crítico de arte, sociólogo ou antropólogo.



Um bom exemplo da arte afro está em Heitor dos Prazeres. Conheça algumas de suas obras.

Conhecendo Heitor dos Prazeres

Heitor dos Prazeres, 1963.

Heitor dos Prazeres nasceu no dia 23 de setembro de 1898, uma década após a Abolição da Escravatura.

Era chamado carinhosamente de Lino, por suas irmãs. Foi crescendo e aprendendo os primeiros passos e as primeiras palavras no convívio daquela família, onde todos procuravam manter a união no trabalho para que pudessem conservar aquele nível social e não acontecesse como em outras famílias negras que, marginalizadas por perseguições raciais e sociais, não arranjavam emprego, moradia e escola e passavam a se agrupar em morros perto dos grandes centros, criando assim as favelas.

Heitor cresceu junto com o crescimento das favelas.

Heitor era negro, franzino e arisco, com gingado de capoeira, e aos 12 anos, já participava das reuniões nas casas das tias.

“Em meio a artistas profissionais do pincel, não faltou quem lhe quisesse dar conselhos. Mas por um sentimento forte preferiu ficar no seu canto, pintando como as coisas lhe vinham à cabeça. Escapou desse modo ao perigo comum aos ingênuos, o de ficar sabido , aprendendo certos truques, amaneirar-se, perdendo os valores expressivos.”

Por iniciativa do seu amigo e admirador Augusto Rodrigues sua tela Festa de São João foi enviada a Londres para participar da exposição coletiva de artistas em benefício da RAF, tendo sido a obra adquirida pela então princesa Elizabeth. Hoje seu nome figura no boletim de divulgação do MOMA, Nova York, ao lado de Portinari, Guignard, Matisse, Picasso, Renoir, Van Gogh, Orosco, dentre outras celebridades.

Jacques Ardies, coautor, ao lado de Geraldo Edson de Andrade, do livro Arte naïf no Brasil, nos esclarece: “NoBrasil, o movimento cresceu a partir de 1937 com Heitor dos Prazeres, Cardosinho e Sílvia. A arte naïf brasileira, portanto, não toma emprestada a inspiração da vanguarda parisiense, mas reflete uma realidade nacional. Sem mimetismo, extremamente rica e variada, é autêntica e, na maioria das vezes, otimista e alegre. Heitor dos Prazeres com exposição de obras e Heitor dos Prazeres Filho; a reedição bilíngüe do livro: Heitor dos Prazeres sua arte e seu tempo e show de Heitorzinho coma terceira geração dos Prazeres, Flávio Prazeres (sax) e Duda Prazeres (percussão), cantando obras suas e do Mestre. Levando a outros centros a arte genuinamente brasileira”.

Dançando o frevo, 1961. TMSC, 29 cm x 22 cm. A.C.I.D.









                    

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